A Saga do Destino - Livro 1
A Chave Elemental
Capítulo 2 - Uma visita inesperada
– Tem certeza, querido? – Marlene perguntou pela quarta vez. – Você está bem mesmo?
– Sim, mãe. Só estou com sono. – Thomas disse, esperando que seu sorriso fosse o bastante para a convencer. – Eu vou dormir.
– Já escovou os dentes? – Bruno perguntou.
– Já. – Thomas respondeu na entrada do quarto. – Boa noite!
– Boa noite!
Ele fechou a porta e se jogou na cama.
Não era muito tarde, mas Thomas se sentia cansado.
Ele esperava que, depois de comer o resto do delicioso espaguete de sua mãe, se sentiria revigorado, mas, não. Ele nem sabia por que estava tão cansado, mas, pelo menos, isso queria dizer que ia dormir com mais facilidade.
Ou era o que ele esperava…
Assim que Thomas fechou os olhos, o poema retornou, se repetindo entre seus ouvidos e o fazendo rolar na cama. E, quando Thomas abriu os olhos de novo, ele notou que não estava mais no quarto.
O mundo ao seu redor era escuro e o poema ecoava como faria no salão de uma igreja vazia, mas ele estava sozinho. Thomas respirou fundo o máximo que podia, já que sentia como se não tivesse pulmões ali, ou sequer um corpo.
De repente, um peso caiu sobre seus ombros e Thomas sentiu que não estava mais sozinho. Ele sentiu a presença de outra pessoa ali com ele, mas essa presença era diferente da que conhecia, era pesada e não parecia amigável.
Ele se virou para ver quem era.
Era uma coisa estranha, parecia não ter corpo, assim como ele; a única coisa que dava para ver era um objeto flutuando no meio do nada: uma máscara, a mesma que Thomas tinha desenhado mais cedo. A forma da máscara mudou devagar, as pontas de baixo se esticando como presas pontiagudas em uma boca que não existia. Thomas deu as costas para ela e correu, sentindo como se lutasse contra a correnteza de um mar sem fim.
Uma luz acendeu ao longe, era mais forte que as “estrelas” e tão aconchegante que Thomas só queria se jogar nela. Mas não importava o quanto ele nadasse, a luz sempre estava longe e a máscara cada vez mais perto.
Thomas perdeu o equilíbrio de repente, mesmo sem chão debaixo de seus pés, e a luz se afastou como um cometa, o mergulhando na escuridão.
Thomas abriu os olhos e a escuridão continuava ali, até que ele conseguiu ver a forma de seu criado-mudo e do guarda-roupa ao lado da cama.
Ele respirou fundo, sentindo pulmões e peito se moverem.
Estava acordado – não estava? – e de volta ao quarto – era mesmo seu quarto? Sim, estava a salvo. E tinha alguém o empurrando… Já era hora de acordar?
– Mais cinco minutos, mãe… – Reclamou sem virar, fechando os olhos e se remexendo, mas os empurrões não cessaram. – Ai, está bem… – Ele reclamou, finalmente se sentando.
Mas, fosse quem fosse que estava ali com ele, não era sua mãe, principalmente com aqueles olhos escuros a centímetros de distância dos seus.
Thomas arfou surpreso, engasgando num grito. Ele se afastou, esticando a mão para o criado-mudo, mas agarrando o nada.
De repente, ele se viu encarando o teto, com os pés pra cima, e sua nuca doía.
– Desculpa. – Disse a pessoa desconhecida, agora se inclinando na beirada da cama. – Você está bem?
Thomas examinou a garota e… Ele prendeu a respiração. Cabelos curtos e lisos na altura dos ombros, rosto redondo e olhos grandes… Ela era idêntica ao seu desenho!
– Olá? – Ela chamou. – Você me entende, não é?
– Quem é você? – Thomas se levantou o melhor que pôde, se apertando contra o guarda-roupa e colocando uma distância entre os dois.
– Sou Édna. Édna Ariépuótì. – Ela disse, com orgulho do nome. Sua voz era forte, com um sotaque quase palpável, era quase difícil entender algumas palavras que dizia. – Seu nome é Thomas, não é? – O garoto só assentiu, achando estranho ouvir uma voz nova chamando seu nome. – É bom conhecer você finalmente. Digo, falar com você, porque eu já conheço você faz um tempo.
Thomas ergueu uma sobrancelha. Ele nunca tinha visto aquela garota antes do desenho, pelo menos não que ele se lembrasse…
– Como você entrou aqui? – Era a pergunta mais racional a se fazer, afinal aquele era o seu quarto! Édna fez um sinal para a janela aberta. Thomas hesitou. Ele tinha a trancado, não tinha? – Ah… Isso tem que ser um sonho…
– Sonho…? – Édna retrucou de modo estranho. – Se fosse um sonho, você acordaria com isso. – E pulou da cama. Thomas quase nem registrou o que aconteceu, só sentiu uma mão em seu braço e uma dor repentina. Ele exclamou, pulando, e teria se afastado mais se o guarda-roupa não estivesse no caminho. – Viu?
Thomas afagou a área dolorida, ao mesmo tempo nervoso e irritado.
Ele se forçou a se acalmar e pensar.
Tinha uma garota estranha no seu quarto, que subiu pela janela que ele tinha (ou talvez não tivesse) deixado aberta, e que, por algum motivo, era praticamente idêntica ao desenho que ele tinha feito mais cedo naquele dia...
De novo: É tudo um sonho! E um daqueles bem lúcidos..., Thomas decidiu. E é claro que um beliscão dado por alguém do seu sonho não vai servir para te acordar!, assim se resolvia o mistério, ele decidiu.
Mas, só para ter certeza, Thomas torceu um pedaço de pele.
Doeu mais uma vez.
E ele continuava no mesmo lugar, encarando a garota.
Não era sonho…?
– O que você está fazendo aqui? – Sonho ou não, Thomas decidiu que precisava de respostas. – Você não passava de um desenho hoje de manhã… – Ele testou a garota.
– Um desenho? – Édna pareceu surpresa, antes de sorrir. Seus dentes eram tão brancos que pareciam brilhar na leve luz que entrava pela janela. – Você me desenhou? Isso é um sinal de que-
No meio da frase, um alto crac ecoou pelo quarto.
Thomas quase pulou com o som, se perguntando se teria acordado os seus pais. Como diabos ele iria explicar aquela garota desconhecida sentada em sua cama? Mas se aquilo era um sonho então não tinha com o que se preocupar.
Ele já estava se sentindo confuso…
Thomas notou o silêncio estranho que tomou o quarto. Édna encarava o teto com os olhos bem abertos, como se tivesse visto algo assustador. Thomas acreditava que estava usando a mesma expressão.
– Isso não foi nada legal…
– É só a madeira assentando. – Ele explicou.
– Se fosse só isso… – Édna murmurou em tom estranho, mas não parecia querer explicar o que se passava por sua cabeça. Sua expressão ficou séria. – Você precisa vir comigo!
O garoto piscou, surpreso com a mudança de assunto.
– Pra… Onde? – Ele tremeu, nervoso com aquelas palavras.
– Para o Grande Reino! – Édna exclamou como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. – Só porque os portais foram fechados para os humanos, não quer dizer que vocês não… – Ela se interrompeu e sua expressão se abalou um pouco. – Você… Não conhece o Grande Reino, não é? – O garoto moveu a cabeça negativamente. – Seus pais? Ou seus avós então?!
– Eu não tenho a menor ideia do que você está falando, e aposto que ninguém mais… – Ele parou, se lembrando de uma coisa. – A não ser que… Você está falando da lenda do portal entre os condomínios… O do tapete?
O rosto de Édna pareceu iluminar o quarto.
– Sim! Exatamente! Então você sabe! – E quando Thomas notou, ela tinha agarrado suas mãos. Ele se arrepiou. – Temos que-
– É uma lenda. – Thomas puxou as mãos para longe das de Édna, um pouco desconfortável com a liberdade que ela tinha tomado. – E lendas não são reais.
– Não são…? E eu não sou real o bastante para você? – Ela parecia irritada agora. – Precisa de mais um beliscão para-
Antes mesmo que Thomas pudesse se afastar, a casa se pronunciou, um pouco mais baixo que antes, e foi Édna quem deu alguns passos para trás.
Muito obrigado, casa, você sempre será minha heroína!, Thomas tentou não rir.
– Ora! – Édna praticamente bufou. – Mas que garoto incrédulo eu fui seguir!
Thomas ligou os pontos tão rápido que seu “eu criança” ficaria com inveja.
– Então era você que ficava me observando!
– Eu mesma! – Édna sorriu como se fosse um grande feito. – Foi para você que a pedra me guiou! – Ela apertou alguma coisa em volta de seu pescoço. – Só estou surpresa que o escolhido seja alguém como você!
O rapaz sentia que aquilo era um insulto, mas antes que pudesse pensar no que falar, ele sentiu uma pressão em seu peito. Ele quase pulou para trás, sem saber o que a garota segurava, por um momento imaginando uma faca ou uma arma.
Thomas teve que fechar os olhos quando o quarto se iluminou com uma luz lilás. Ele conseguiu ver melhor os detalhes do rosto de Édna e, pela primeira vez, ela não era só uma aparição coberta pelas sombras.
Mas a aparência da garota não importava, o que realmente lhe interessava era o que ela segurava: era um tipo de cristal longo e fino, polido e de uma coloração arroxeada, que brilhava como se uma chama vivesse dentro dela.
Examinando a pedra com olhos semicerrados, Thomas sentiu seu medo diminuir. O sentimento ainda estava ali, em algum lugar no canto de sua mente, mas dessa vez era mais fácil de ignorar, por algum motivo.
– O que é isso? – Thomas perguntou, fascinado.
– Uma pedra da família Maes. – Édna levantou os olhos para o garoto com uma expressão indecifrável. – Você realmente não sabe…?
Thomas deu de ombros, sem tirar os olhos da pedra. Ele ergueu a mão para o cristal, com um pouco de medo, mas sentindo que precisava segurar a pedra em suas próprias mãos. Édna não se afastou, então ele foi em frente. Um calor aconchegante o envolveu quando seus dedos tocaram a superfície polida do cristal. Thomas sentiu seu corpo e sua mente relaxando como se estivesse no meio de uma meditação.
– De onde veio isso? – Ele tinha que saber.
– Do Grande Reino, assim como eu. E vai ter que voltar para lá. – Édna abriu a palma da mão. O garoto hesitou, mas devolveu o cristal. – Será que você pode me ouvir agora? Isso é sério!
Thomas só assentiu, desviando os olhos da pedra contra sua vontade.
– Precisamos de você no Grande Reino. – Édna apertou o cristal contra o peito e a luz se apagou, os deixando no escuro de novo. – Adraúde está planejando alguma coisa e precisamos de ajuda! Já faz um bom tempo que estou procurando por você…
Thomas tinha muitas perguntas, mas decidiu se focar na mais importante:
– Por que eu?
– Você é o escolhido de San Iak. Esse cristal pertencia a ele e foi o que me guiou até você! Viu? – Ela apontou a pedra para o garoto e ela brilhou de novo. – A pedra não reage assim com qualquer um. Passei por vários outros garotos e garotas como você para encontrar você.
Garotos e garotas como ele?
– Você é o nosso guerreiro.
Thomas hesitou, literalmente arrepiado ao ouvir aquela palavra.
– E-eu… – Ele murmurou, se sentindo nervoso de novo. – Eu sou só um garoto normal.
– Normal?
– Sim, completamente normal, com uma vida normal! – Ele disse rapidamente, embora algo em sua mente tentasse dizer que aquilo não era totalmente verdade.
– Hum, engraçado… – Édna disse, seu sotaque ficando mais forte e pesado. Havia um sorriso em seu rosto, mas não parecia exatamente feliz. – Porque, pelo que eu vi desse mundo, a sua vida não é do tipo que eu chamaria de normal…
Normal é um termo subjetivo. Thomas pensou, mas balançou a cabeça. Aquilo não importava!
– Tá, mas o caso é… – Thomas voltou ao tema. – Eu não sou um guerreiro, eu não sei lutar, eu quase nem sei me defender fisicamente! Você escolheu a pessoa errada! – Ele sentiu como se estivesse tremendo e nem tinha certeza do porquê.
– Mas… Talvez possa aprender? – Édna disse simplesmente.
Thomas hesitou, sentindo as bochechas se esquentarem. Bem, sim, ele podia aprender… Mas ele nem sequer conseguia dar uma cambalhota numa aula de Educação Física, imagine lutar igual aos guerreiros que assistia em seus filmes favoritos!
– Talvez…?
Édna o olhou de modo estranho, mas não chegou a falar nada. A casa rangeu alto e devagar, como um animal acordando, e Édna apertou os lábios, parecendo nervosa.
– Por favor… O Grande Reino precisa de ajuda… – Ela murmurou, quase baixo demais para ouvir. Era como se estivesse com medo. – Olha, você pode vir comigo e se realmente não for quem eu procuro… Eu trago você de volta! Eu prometo!
Thomas pensou.
Ele não podia ignorar o fato de que Édna estava pedindo ajuda, e ele sabia que, se pudesse, ele gostaria de ajudar. Mas ao mesmo tempo ele queria manter os pés no chão e não fazer besteira.
Sem contar que nada daquilo fazia sentido! E se Édna existia de verdade, era melhor correr para o quarto de seus pais e avisar que uma estranha tinha invadido seu quarto!
Mas, se era um sonho…
Por que não tentar ajudar?, pensou consigo mesmo. Eu posso não ser um guerreiro na vida real, mas num sonho eu posso ser, não é?
É claro que pode.
A voz em sua cabeça estava sendo legal dessa vez…
De repente algo caiu com um baque alto, sendo seguido por um gritinho abafado de Édna antes dela cobrir a boca.
– Não precisa ter medo! É só a casa! – Thomas retrucou revirando os olhos.
– Tem alguma coisa nessa casa. – Édna falou com seriedade. – É como se ela não me quisesse aqui…
Thomas sentiu um calafrio ao pensar naquilo
– Thomas? – O garoto quase pulou ao ouvir a voz de seu pai vindo do corredor. – Está tudo bem? O que foi isso?
– Ah, sim, pai! Foi só… – Thomas desviou os olhos para a janela que agora estava fechada. – Foi só a janela! Eu esqueci aberta e o vento fechou!
– Ah, certo… – Bruno resmungou alguma coisa que não deu para ouvir. – Então tranque essa janela e vá dormir! Já é tarde.
– Tudo bem, pai. Boa noite! – Thomas e Édna ficaram em silêncio, ouvindo os passos pesados se distanciando pelo corredor até que a porta do outro quarto fechou com um som surdo. – Como assim a ‘casa não quer você aqui’…?
– Eu não sei. – Édna deu de ombros. – Mas sei muito bem o que é uma casa assentando, e não é assim. – Ela se virou, focando os olhos no relógio na escrivaninha de Thomas e quase pulou no lugar. – Oh, Ângâm Tsendói! Já são quase onze horas!
– Sim, está bem tarde… – E por algum motivo eu continuo sem sono…?
Édna se virou para Thomas com as mãos juntas, suplicante.
– Está sim! Por favor! Venha comigo! Agora! – E nem sequer esperou por uma resposta, simplesmente agarrou a mão do garoto e o puxou.
Thomas tentou ignorar o sentimento estranho da mão quente em seu pulso e também o estalar alto da madeira da casa, mas ele não achou forças para parar a garota. Édna abriu e pulou a janela como se já tivesse feito aquilo milhares de vezes antes e aquele pensamento deixou o rapaz inquieto.
Ele hesitou, nervoso e confuso. Aquilo era uma loucura, ia mesmo fazer aquilo? Seguir atrás de uma pessoa desconhecida como se ele fosse Alice seguindo o coelho branco?
É só um sonho…, ele repetiu para si mesmo. Só um sonho…
Ainda assim…
– Você promete me trazer de volta?
– Eu prometo. – Édna assentiu, seu tom soava sério, verdadeiro.
O garoto suspirou, fazendo sinal para a garota esperar. Primeiro colocou a blusa verde, depois calçou os tênis, e finalmente se juntou à Édna, pulando a janela. E, enquanto seguia a garota, ele sentia lá no fundo que estava fazendo uma coisa idiota. Mas aquilo era um sonho, afinal, que mal faria?
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