quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Como Treinar o Seu Dragão - To The Sky - Capítulo 12

~Capítulo 12 - Do céu ao chão~

   O céu estava azul, nuvens brancas como neve o pontilhavam cá e lá. A luz do sol estava quente, mas confortável, refletindo no mar e nas escamas negras de Banguela, dando-lhe um estranho brilho azulado.

   Soluço não sabia se ficava mais interessado na vista ou no dragão.

   “Muito bem amigão, a gente vai devagar e com calma, falou?” Banguela olhou para cima, soltando um som grave do fundo de sua garganta. Soluço afagou seu pescoço em resposta. Ele desviou os olhos para o folheto de manobras que tinha desenvolvido para aquela ocasião. “Vamos lá... Posição 3, não 4!”

   Ele inclinou o pé, girando a barbatana, a abrindo na posição que tinha desenhado, e ele sorriu ao ver como Banguela olhou para a barbatana com interesse antes de trinar e se mover levemente para os lados, pelo jeito tão animado quanto o humano.

   Embora Soluço também se sentisse um pouco nervoso…

   Era a hora, a primeira vez em que estavam voando pra valer. Depois de todos os treinos, depois de tanto tempo preso ao chão. Era quase como em seus sonhos, com o mar e a ilha lá embaixo e o céu acima. Mas dessa vez era real.

   Eles viraram de lado e Soluço checou para ver se tudo estava certo. A barbatana virava um pouco com o vento, mas permanecia na posição correta.

   Soluço respirou fundo.

   “Muito bem... Tá na hora, tá na hora...” Ele se segurou com força na sela e os dois se lançaram para baixo. O vento passou com eles, o som alto se misturando com um rugido de Banguela enquanto o mar e as pedras ficavam cada vez mais próximas.

   Banguela bateu as asas enquanto Soluço o ajudava a manter a posição e o equilíbrio. Com o vento forte e a barbatana virando de lado, era um pouco difícil, mas eles conseguiram. A asa de Banguela tocou a água e eles continuaram em direção às colunas de pedras que se erguiam acima deles. O vento passava diferente por entre elas e se a barbatana não permanecesse no lugar durante aquela parte do voo, isso queria dizer que Soluço devia voltar à forja e aos seus cadernos.

   Mas eles passaram por baixo da pedra, assustando as gaivotas que estavam por lá, e a barbatana resistiu.

   “É! Funcionou!” Soluço sorriu, examinando a sua criação uma última vez, só para ter certeza. Ele tinha conseguido: ela ficava no lugar assim como devia, movendo-se apenas quando eles mudavam o curso! Um sucesso!

   Banguela soltou um guincho quando Soluço moveu o pé mais uma vez, virando a barbatana para o lado. Mas essa acabou pegando uma rajada de vento errado, lançando-os em direção às rochas. O dragão reclamou alto e Soluço sentiu seu corpo ser lançado para frente. Por sorte seu elástico de segurança o manteve no lugar e Banguela voou para o lado.

   “Desculpa!” Soluço exclamou acima do som do vento e do mar, enquanto Banguela balançava a cabeça. O dragão guinchou mais uma vez, do mesmo modo que antes. Soluço rapidamente pisou para virar a barbatana ao ver outra rocha se aproximando, mas não foi rápido o bastante. Eles atingiram a outra pedra, lançando poeira e pequenos fragmentos para longe. “Foi mal! Foi mal!”

   Banguela soltou um som estranho e quando Soluço notou, tinha sido atingido com força no lado do rosto por uma das barbatanas na cabeça desse.

   “Tá, tá bom! Já entendi...” Soluço reclamou, sabendo que o dragão tinha bom motivo para o repreender. Ele tinha que prestar atenção, tinha que se focar! Ele examinou o papel novamente. “Posição 4, não, não... 3!”

   E era como se Banguela já soubesse o que aquilo queria dizer. Ele bateu as asas com força, virando o corpo para cima antes mesmo que o garoto pudesse guiá-lo a fazer tal coisa. A posição da barbatana permitiu que ele subisse o céu como se estivesse escalando uma montanha.

   “Isso! Vai, garoto!” Soluço sorriu, tanto com o que estavam fazendo quanto com a sabedoria de que Banguela estava o acompanhando, como se já soubesse o que ele queria fazer. Ele fechou os olhos por um segundo. “Ah, isso é incrível... O vento nos cabelos...” 

   Era igualzinho ao seu sonho… O vento, o calor do sol...

   Ele abriu os olhos e no mesmo instante algo passou voando por seu rosto.

   “A lista de manobras! Não! Para!” Ele estendeu a mão para tentar agarrar o folheto, se esticando o máximo que conseguia enquanto esse voava para longe.

  Banguela trinou alto, como que para chamar sua atenção ou para saber o que estava acontecendo. Eles estavam chegando ao ápice…

   E, com um barulho suave, o elástico de segurança se soltou.

   Soluço se sentiu sendo lançado para cima, como se não houvesse mais nada o puxando para o chão e como se ele pudesse voar sem asas. E quando ele olhou para baixo, ele viu Banguela desviando olhos verde-amarelos para ele, arregalados, surpresos, quase assustados. Tudo durou apenas alguns segundos, mas esses pareceram se estender por horas.

   E então eles estavam caindo.

   Banguela guinchou alto, balançando as pernas e tentando bater as asas contra a força do vento. Soluço quase nem conseguia ouví-lo com o vento gritando em seus ouvidos. Ambos giravam enquanto caiam, completamente sem controle.

   “Ah, não! Não! Meus deuses! Não!” Soluço gritou, quase sem ar, seus dedos segurando o folheto de manobra como se esperasse que ele pudesse salvar sua vida. Ele viu enquanto o dragão tentava se aproximar, chamando-o alto com seus rugidos e guinchos.

   O mar ficava cada vez mais perto.

   “Banguela! Banguela! Você tem que arrumar um jeito!” Ele gritou de volta para o dragão, enquanto esse girava sem controle. “Não, não! Desce mais perto! Desce--” Ele não chegou a terminar a frase, quando a cauda do dragão atingiu seu rosto com força, o lançando para longe.

   Banguela guinchou alto, tentando tomar controle de si mesmo novamente, se esticando para o humano. Ele soava assustado, terrivelmente assustado, de um modo que Soluço não tinha ouvido antes, e isso machucava. Tudo o que ele queria era ajudar o dragão. Nem estava pensando em si mesmo no momento, ele só queria salvar a vida de Banguela.

   Soluço tentou ir até o dragão, nadando no ar como se estivesse no mar. Banguela guinchou mais uma vez, se virando como se tentasse não atingir o humano novamente com a cauda. Mas enfim, Soluço conseguiu se segurar à sela de couro e a primeira coisa que fez, foi prender o elástico mais uma vez.

   Mas eles ainda caiam.

   Soluço enfiou o folheto na boca e puxou a sela de Banguela para cima. O dragão abriu as asas na mesma hora, usando-as como velas contra o vento, mas o momentum os manteve descendo. Rápido. Os lançando em direção às colunas de pedra que enfeitavam os arredores de Berk.

   Banguela guinchou mais uma vez, como que falando para Soluço fazer alguma coisa. Ele tentou. Tentou ler o folheto, mas o vento não deixava. Mas ele não tinha tempo para o folheto, só mais um pouco e ambos se espatifariam contra as rochas.

   Não...

   Era como se algo tivesse tomado conta dele, uma energia ou um poder que ele não poderia explicar para ninguém. Seu corpo se esquentou e seus dedos se seguraram à cela com força. O folheto foi esquecido, lançado para voar para longe com o vento, enquanto Soluço se apertou contra Banguela, como se quisesse se tornar um com ele.

   E então, ele moveu o pé.

   A barbatana abriu.

   Os dois se lançaram para o lado, desviando de uma das colunas de pedra bem a tempo. Mas havia mais do que só uma, um labirinto de rochas e de névoa densa e branca. Mas era como se Soluço não precisasse ver, ele simplesmente sabia para qual posição mover a barbatana, era como se pudesse sentir!

   Eles desviaram das rochas, sem sequer tocá-las com as asas ou a cauda uma vez só. E era como se Soluço não estivesse ali controlando a barbatana, era como se Banguela voasse sozinho.

   Não.

   Era como se Soluço e Banguela fossem um.

   A névoa se dissipou aos poucos, abrindo-se para o céu azul e o mar da mesma cor.

   Soluço respirou fundo, sentindo-se sem ar. E quando Banguela trinou embaixo dele, era como se sua mente finalmente tivesse processado o que tinha acontecido.

   Eles conseguiram voar quase perfeitamente e sem o folheto de manobra, sem nada! Apenas instinto e confiança... E talvez algo mais… Soluço não sabia como explicar. Só tinha uma coisa em que conseguia pensar.

   Eles conseguiram.

   “YEAH!” Soluço lançou as mãos para o céu, sentindo seu coração batendo forte no peito.

   Banguela trinou mais uma vez, se balançando de modo animado. E Soluço sabia que o dragão estava sentindo o mesmo que ele.

   Banguela lançou uma bola de fogo para o céu, que explodiu logo à frente deles, criando uma grande nuvem de fogo e cinzas. E o dragão prontamente voou até ela.

   “Ah, qual é...”

   Ele fechou os olhos, se deixando ser envolto pelas chamas e fumaça. Foi um sentimento estranho. Ele não queimou, mas sentiu como se o fogo dançasse por sua pele. Quando as chamas se dissiparam em apenas fumaça, Soluço tossiu alto enquanto Banguela arrulhava contente embaixo dele.

   O humano não conseguiu deixar de sorrir com a reação do dragão.

   “Ah, muito obrigado mesmo.” Soluço passou a mão por sua camisa, se livrando da fuligem que havia se segurado no tecido. Banguela trinou, olhando o garoto de baixo. Soluço afagou seu pescoço. “Banguela! Depois desse sucesso, a gente bem que merece um descanso!” Sua barriga roncou e ele riu. “E comida.”

   Banguela ficou animado com a menção à comida.

   Os dois desceram para o mar, a forma negra de Banguela refletindo na superfície azul. Soluço pôde até ver a si mesmo, como tinha visto antes, lá no cânion. Já tinha se passado tanto tempo, e cá estavam eles, voando sobre o mar.

   E não era como se fosse um humano controlando a barbatana de um dragão, era como se os dois voassem como um só. Soluço teria achado aquilo um tanto estranho, porém interessante, se ainda não estivesse transbordando de excitação depois do que tinham acabado de fazer.

   Eles pescaram juntos pela primeira vez. Com Banguela examinando a água até encontrar um pequeno cardume de peixes. Soluço nem saberia explicar como fizeram aquilo, como se já tivessem voado e pescado peixes juntos há anos. Soluço admirou a vista enquanto eles pegavam alguns peixes.

   O sol já estava quase tocando o horizonte quando Soluço e Banguela encontraram um lugar para fazer uma fogueira.

   “Ah, que dia!” O viking riu para si mesmo, passando a mão pelo cabelo sujo de fuligem. “Eu… Eu não esperava que desse tão certo assim…! E eu nem precisei do folheto de manobras!” 

   Banguela ronronou, antes do som ser substituído pelo nojento som do dragão mexendo entre os peixes com seu focinho.

   “Eca...” Ele desviou a atenção para o peixe que estava preparando. Ele parou para pensar na aventura de apenas algumas horas antes. A visão do mundo tão pequeno lá em baixo, as nuvens tão próximas que ele poderia até tocar... “Aquilo foi incrível... Eu não acredito que é isso que você sempre vê desde que aprendeu... A voar...”

   Banguela desviou a atenção dos peixes para o humano, notando a diferença na voz desse.

   “Sabe… Eu estou feliz por conseguir fazer você voar de novo...” Soluço sorriu levemente, afagando atrás das orelhas de Banguela. O dragão ronronou, abrindo os olhos e encarando o garoto. “É… Só é um problema que você não consiga voar sozinho…” O sorriso sumiu e Soluço suspirou. “Você está praticamente preso comigo…”

   Banguela soltou um trinado suave. Soluço ergueu o olhar quando um focinho negro se apertou contra sua bochecha. O toque foi repentino, mas foi apreciado.

   “Desculpa, Banguela… É, é só que, hah...” Ele disse suavemente. “É tudo culpa minha. Se eu não tivesse tentado impressionar todo mundo da vila… Cá entre nós, mais o meu pai mesmo…” Soluço passou a mão pelos cabelos ruivos e desarrumados, grunhindo alto. “Ugh…! Por que eu tinha que atirar em você?!”

   O Fúria da Noite trinou de novo, chamando a atenção do humano. Ele ergueu a cauda,

mostrando a barbatana agora completa. Soluço o encarou, sem entender muito bem o que o dragão queria dizer. Banguela bufou e soltou um choramingar baixo, deitando a cabeça no colo do humano.

   Soluço se surpreendeu. Banguela nunca tinha feito aquilo antes...

   Mas ele entendeu e não conseguiu deixar de sorrir com o choramingar do dragão. Ele passou a mão pelo pescoço negro de Banguela, coçando suas escamas fortes, fazendo o choramingar se transformar em um ronronar.

      “É… Se eu não tivesse atirado em você… Bem, não seriamos amigos, não é mesmo, amigão?” Banguela respondeu com um arrulho e Soluço riu, processando a situação em que estava.

   Estava com um dragão, um Fúria da Noite acima de tudo, descansando a cabeça em seu colo, logo depois dos dois terem voado pelos penhascos de Berk e quase caído uma longa queda até suas mortes. Se alguém, algum dia, o contasse que tal coisas aconteceriam em sua vida, Soluço não teria acreditado. Mas cá estava ele.

   Era surreal. Era quase como seus sonhos... Tinha sido uma experiência sem descrição, um sentimento de pura liberdade e... De algo mais que Soluço não conseguia explicar. A sensação do vento nos cabelos, do corpo forte de Banguela logo em baixo e daqueles olhos grandes, verde-amarelos, o encarando com curiosidade e um momento com medo...

   Guinchos altos surpreenderam tanto o humano quanto o dragão, e Banguela rapidamente levantou a cabeça do colo do rapaz.

   Um pequeno grupo de Terrores Terríveis voou em direção a eles e ao pequeno acampamento temporário que tinham criado. Soluço sorriu ao ver os pequenos dragões se mordendo e empurrando enquanto voavam, até chegar ao chão.

   Banguela no entanto, não parecia estar muito feliz. Ele rosnou, mostrando os dentes. E por um momento Soluço podia jurar que ele não estava rosnando só para proteger os peixes... Mas por qual outro motivo?

   Os Terrores Terríveis guincharam alto como ratinhos arruaceiros, se aproximando da pilha de peixes que Banguela havia pego. O Fúria da Noite rosnou alto, envolvendo a pilha com um dos braços.

   Soluço assistiu tudo em silêncio, enquanto um dos pequenos dragões conseguiu fisgar um peixe do dragão maior. Eles brigaram entre si pela pesca e Soluço riu do jeito como agiam. Banguela bufou ao seu lado, o encarando com uma expressão estranha.

   “O que foi?” Soluço perguntou.

   Mas a atenção do dragão foi tomada por um peixe que tinha se levantado entre os outros. Um pequeno Terror saiu do meio da pilha, arrastando pela cauda um peixe maior do que ele. Banguela não o permitiu terminar a missão, agarrando a cabeça da pesca com seus dentes, puxando-o de volta até que o dragão menor acabou soltando.

   Banguela engoliu o peixe de uma vez, soltando um som estranho e tremido do fundo de sua garganta. Soluço se surpreendeu. Quase soava como uma risada... Fúrias da Noite realmente eram criaturas interessantes... Não, Banguela era interessante.

   O Terror Terrível não pareceu feliz, ele moveu a cauda com força para os lados, se erguendo como que para parecer maior do que era, guinchando baixo de modo que poderia ser intimidador para criaturas de pequeno porte. Ele inflou o pequeno peito e estava prestes a atirar...

   Quando Banguela soltou uma diminuta bola de fogo bem dentro da boca pequena.

   Soluço se surpreendeu ao ver o Terror Terrível inflar como um balão por um momento, antes de cair no chão, fumaça saindo de dentro de sua boca e de suas narinas. Mas ele parecia estar bem, só um pouco desorientado com a repentina explosão.

   “É, vocês não são muito à prova de fogo por dentro não é?” O garoto riu levemente, ficando com dó do pequenino. Ele pegou um dos peixes que pretendia preparar e o lançou na direção do dragão. “Toma aí, amiguinho.”

   O Terror Terrível engoliu o peixe pequeno com muito menos graça que Banguela, mas tão rápido quanto o Fúria da Noite. Soluço prontamente ignorou o leve rosnar do dragão ao seu lado, focando-se no outro, de cor esverdeada e com pequenos chifres vermelhos.

   O Terror o encarou com aqueles olhos pequenos e amarelos, virando a cabeça como um filhote curioso. Ele se aproximou com cuidado, cheirando o garoto ao chegar perto de sua mão. Soluço ficou parado, esperando pelo que ia acontecer em seguida.

   Tudo o que o pequeno dragão fez foi guinchar alto, encarando o viking como se sorrisse, antes de se apertar contra sua perna como um cachorrinho querendo carinho. Soluço afagou as costas quentes e cobertas de placas vermelhas do Terror Terrível.

   Banguela bufou alto, finalmente fazendo o rapaz se voltar para ele.

   “O que foi? Nunca ouviu falar que ‘quem se importa, compartilha’?” Soluço retrucou, sorrindo com a reação do dragão. Banguela continuava o surpreendendo com o seu jeito estranhamente humano de ser.

   Mas Banguela não era o único dragão a agir de modo que poderia ser reconhecido como humano.

   Soluço tinha prestado atenção aos outros dragões na arena, no modo como eles olhavam um para o outro, ou olhavam em volta, quando encaravam os jovens vikings. Era como se houvesse algo por trás daqueles olhares, não só instintos naturais de um animal. E, desde que tinha conhecido Banguela, Soluço tinha quase certeza de que dragões eram tão inteligentes quanto humanos.

   “Tudo o que sabemos sobre vocês… Está errado…” Ele suspirou, lembrando das coisas que tinha ouvido desde que nascera, do Manual dos Dragões e dos treinos com Bocão e os outros jovens da tribo. Entre eles Biscoito.

   Soluço sentiu um leve enjoo ao se lembrar que o foco daqueles treinos era prepará-los para matar dragões... Soluço não tinha tido coragem de matar um dragão, não porque ele não gostava da imagem e do sangue ou coisa assim – acredite, ele já tinha visto muita coisa em uma tribo em que os maiores troféus são cabeças de animais mortos – mas simplesmente porque ele não... Conseguiu ter forças. Naquele momento apenas, ele conseguiu ver algo mais para além daqueles olhos reptilianos... Algo que só agora ele estava começando a entender.

   Quando o sol estava começando a sumir no horizonte, Soluço e Banguela finalmente se levantaram. Eles apagaram o fogo e se livraram dos Terrores Terríveis. O verde que tinha se apegado a Soluço não queria deixá-lo ir, mas mais alguns rosnados e um movimento decisivo de cauda fez com que o pequeno Terror os deixasse partir.

   Eles retornaram juntos para o cânion. A luz do sol já não atingia a campina e a lagoa lá embaixo, mas o ar estava surpreendentemente quente.

   Soluço tirou o colete de couro e a camisa verde, tossindo levemente quando fuligem entrou em sua boca. Banguela soltou um arrulho baixo ao seu lado

   “É, de novo, muito obrigado por isso.” O garoto disse, passando a mão violentamente pelo cabelo desarrumado, fazendo mais flocos de fuligem se espalharem pelo ar. “É melhor limpar…”

   Antes mesmo que Soluço pudesse notar, ou reagir, algo o empurrou pelas costas.

   “Ah!” O garoto caiu dentro da pequena lagoa com um alto “splash”. “Banguela!” Era uma sorte que ele já tinha retirado a roupa.

   O dragão soltou aquele mesmo som de antes, a risada estranha e draconiana. Soluço balançou a cabeça, jogando água na direção do dragão. Banguela respondeu pulando dentro da água, fazendo uma onda forte o bastante para jogar Soluço para trás.

   Mas o humano não conseguiu segurar uma risada, iniciando uma pequena guerra de água entre os dois. Não que Soluço tivesse alguma chance de vencer contra um dragão como Banguela.

   “Ok, ok, tá bom...” Soluço se arrastou de volta para a terra depois de ser empurrado naquela direção pelas ondas de Banguela fazia. “Você venceu...” Ele sorriu ao ver Banguela bufar alto, erguendo a cabeça com ar importante. “Meus parabéns, oh grande rei das guerras de água, Banguela!”

   Ele riu quando o dragão bufou de novo, balançando a cabeça e saindo da água aos poucos.

   Soluço tentou se livrar do excesso de água em seus cabelos ruivos. Não ter uma toalha por ali não ajudava, mas quem se importava mesmo? Ele colocou as calças novamente, feliz ao ver que elas estavam menos sujas que a camisa verde.

   Ele parou por um segundo. Era impressão sua ou Banguela estava o observando? Bem, era a primeira vez que Soluço colocava roupas na frente do dragão, possivelmente estava curioso. Soluço tentou ignorar o quão desconfortável e levemente embaraçado ele se sentia com aqueles grandes olhos verdes o encarando; ora, era só um dragão!

   Um vento frio de repente passou por ele, fazendo seu corpo inteiro arrepiar, dos pés à cabeça. A sensação de frio ficava pior graças à água da lagoa ainda em seus membros.

   “Ah, já está ficando frio...” Soluço tremeu levemente.

   E, de repente, antes que o garoto pudesse sequer processar, Banguela tinha se aproximado dele, o envolvendo com uma asa e o apertando contra seu corpo coberto de escamas quente.

   “Hã... Banguela?” Soluço ergueu o rosto, encarando olhos grandes e verde-amarelos. O dragão ronronou baixinho, o som fazendo o corpo do humano vibrar levemente. O frio havia sumido, com o calor que emanava do dragão envolvendo Soluço como um cobertor novo de lã de ovelha. “Heh, valeu, amigão...”

   Banguela trinou suavemente, esfregando a cabeça contra a de Soluço.

   Soluço envolveu o pescoço forte de Banguela com seus braços. O dragão se apertou contra o humano, antes de começar a lamber seus ombros nus e sardentos, para a surpresa do viking. A língua de Banguela era levemente áspera, o que fazia cócegas.

   “Ahaha! Para, Banguela, para!” Soluço riu, tentando empurrar o dragão para longe.

   Banguela ronronou baixinho, lambendo o pescoço do garoto e ignorando os braços que tentavam o afastar.

   Era um pouco nojento ter seu pescoço e ombro cobertos com saliva de dragão. Mas mesmo assim, Soluço tinha que sorrir, tanto por causa das cócegas, tanto por saber que aquilo era algo amigável vindo do dragão.

   Até que…

   As cócegas sumiram, sendo substituídas por uma dor forte e repentina. Soluço soltou um grito, sentindo dentes afiados atravessando a pele fina de seu ombro. Banguela estava o mordendo!

   “Banguela! Ack! Para! Para com isso!” Soluço tentou empurrar o dragão, sem muito sucesso, até que decidiu usar também suas pernas. Ele chutou contra o peito de Banguela até sentir o dragão se afastar um pouco. “Me larga!”

   Ele soltou um sibilo alto quando os dentes deslizaram para fora de seu ombro e o dragão cambaleou para trás. Banguela soltou um som estranho, quase como se estivesse ofendido com a reação do humano.

   Soluço deu uma olhada no estrago. Uma marca grande e levemente circular dos dentes do Fúria da Noite enfeitava seu ombro. Sangue escorria por suas costas e seu braço, mas por sorte não era em grande quantidade; não parecia ser uma mordida muito profunda, mas doía como se fosse.

   “B-Banguela…!” O viking gaguejou encarando o dragão de olhos arregalados. “V-você me mordeu…!”

   Banguela soltou um som suave, lambendo os dentes que estavam manchados com um pouco de sangue. Soluço estava confuso, levemente assustado. Nada do que tinham feito durante aquele dia inteiro merecia um desfecho como aquele! Porque Banguela havia o mordido? Qual era a motivação por trás daquilo?

   Soluço sentiu como se milhares de pensamentos diferentes passassem por sua cabeça de uma vez só e ele se sentiu tonto. A dor em seu ombro não ajudava. Era como uma chama estranha, queimando no fundo de sua mente. O deixava desconfortável.

   Banguela soltou um choramingar suave. E o rapaz voltou à realidade de seu estupor repentino. Seu ombro ardia. Ele não sabia o que fazer...

   “Eu… Eu vou pra casa…” Soluço decidiu, agarrando sua camisa. Ele não desviou os olhos do dragão, prestando atenção a seus movimentos, e dando vários passos para trás quando Banguela veio em sua direção. “Banguela! Não!”

   Banguela parou, soltando mais um choramingar do fundo de sua garganta, encarando Soluço com aqueles grandes olhos verde-amarelados. Era como se estivesse perguntando o que tinha feito de errado.

   “Você fica aqui.” Soluço disse simplesmente, dando alguns passos para trás. Quando ele viu que o Fúria da Noite não se moveu, ele correu para fora do cânion. A mordida ardia enquanto ele se movia e parecia doer mais a cada passo que dava em direção à sua aldeia.

   Sua cabeça ainda estava cheia daquelas imagens e mensagens perturbadas, o que o confundia em seu caminho. Ele bateu contra algumas árvores cá e lá. Depois de um tempo, decidiu parar para se orientar.

   Ele conseguia reconhecer parte do que estava pensando. Uma parte dele queria voltar para Banguela, talvez para perguntar porque ele tinha feito isso – mesmo sabendo que ter uma resposta direta de um dragão era pedir demais – ou talvez para simplesmente ficar lá com o dragão. A outra queria correr dali, voltar para seu lar, para sua tribo.

   Mas ele não podia voltar para casa com o braço daquele jeito!

   “Calma, Soluço, pensa um pouco...”

   Ele examinou a mordida novamente, o sangue tinha parado de escorrer, mas ainda estava ali, formando uma grande mancha vermelha em sua pele pálida e pontilhada de sardas.

   Ele não podia deixar ninguém vê-lo daquele jeito, saberiam que era uma mordida de dragão sem precisar pensar mais. Soluço não estava a fim de mentir sobre outro dragão que ele acabou encontrando enquanto saia por aí na floresta. E ele também não queria correr o risco de deixar os outros saberem de Banguela.

   Lá estava ele, se preocupando com Banguela de novo...

   “Ah, de qualquer modo... É melhor cuidar dessa marca...” Ele decidiu.

   Soluço caminhou por entre as casas o mais silencioso possível. Estava escuro, praticamente já era hora de recolher, o que era uma sorte. Ele não encontrou ninguém em seu caminho até a forja.

   Chegando lá, ele entrou com cuidado, mas por sorte nem Bocão nem ninguém estava pela área. Soluço foi até o seu cantinho da forja, acendendo uma das velas que deixava por ali. Ele deu uma olhada na mordida. Mesmo com o sangue, ele conseguia ver perfeitamente a marca de cada dente.

   Soluço pegou um pouco de água e limpou o machucado, sem se esquecer de jogar fora a água ensanguentada. Ele foi atrás das bandagens que haviam pela forja. Não era incomum que pessoas se machucassem mexendo com armas afiadas e com fogo e metal quente. Soluço já tinha usado alguma daquelas faixas antes, mas não em grande quantidade como dessa vez. Ele enfaixou o ombro direito, era uma sorte ele ser canhoto.

   Quando estava pronto, ele jogou a camisa verde por cima da cabeça, feliz ao ver que nenhuma mancha de sangue apareceu no tecido. Era hora de voltar para casa.

   Ainda em silêncio, e tentando se esconder de qualquer pessoa que poderia estar andando por ali à essas horas, Soluço retornou à sua casa. Um alívio estranho tomou conta de seu corpo ao ver a conhecida e aconchegante construção não muito longe.

   Soluço fechou a porta lentamente ao entrar.

   “Soluço.”

   Soluço pulou quase meio metro ao ouvir a voz da irmã.

   “Ah! Ah, oi, Biscoito! Oi... Biscoito...” Soluço se virou para a garota, sentindo-se nervoso. A mordida em seu ombro ardia. Ele timidamente levou a mão ao braço. “Ainda acordada?”

   “É claro, enquanto meu irmão não volta para casa.” Biscoito disse simplesmente, sentada perto do fogo. Ela se levantou, deixando de lado a caneca que tinha em mãos.

   Soluço se sentiu nervoso a cada passo da irmã, sentindo como se ela soubesse o que havia por baixo de sua camisa verde. Mas aquilo era ridículo, é claro que ela não sabia.

   “O pai chegou.” Biscoito disse depois de alguns segundos de silêncio. Soluço voltou toda a sua atenção para ela. “Ele quer falar com você.”

   “Ah, é, o pai quer falar comigo... De novo...” Soluço suspirou, mas ele estava contente. Seu pai havia voltado mais uma vez de uma busca pelo Ninho dos Dragões. Era uma benção dos deuses, uma vez que tantos acabavam não voltando. “Eles tiveram algum sucesso...?” Soluço perguntou só por perguntar.

   “Não.” Biscoito deu de ombros.

   “Ah... Como sempre...” Soluço assentiu. Ele fechou os olhos ao sentir uma leve pressão dentro de sua cabeça. A mesma energia de antes pareceu dançar por trás de seus olhos, deixando-o tonto novamente.

   Biscoito pareceu notar isso.

   “Você está bem?” Ela perguntou, mais suave do que estava sendo ultimamente.

   “Sim! Sim... Só uma dorzinha de cabeça, sabe como é...” Soluço riu de modo nervoso. Ele desviou o olhar enquanto sua gêmea o encarava, como se tentasse ver através dele. “Ah, mas então...? Você disse que o pai quer falar comigo... Ele… Ele está aqui? No Grande Salão, talvez?”

   No mesmo instante, a porta de trás da casa abriu, e Stoico e Valka entraram na casa. Eles estavam de braços dados, o talvez fosse um bom sinal.

   “Ah, oi pai, oi mãe... A Biscoito disse que...” Soluço viu enquanto a irmã subia até a escada, sentando nos degraus altos. “Você quer falar comigo?”

   “Sim, Soluço, eu quero.” Stoico disse, soltando o braço de sua esposa e colocando as mãos na cintura, e seus olhos verdes ficaram sérios. “Eu soube que você tem uns segredinhos.”

   Soluço sentiu seu sangue gelar com aquelas palavras.

   “Bom, é... Eu tenho?”

   “Até quando achou que ia esconder de mim?” Stoico ergueu uma sobrancelha grossa e vermelha, a expressão não mudou, como se tivesse sido esculpido em pedra.

   “Olha, eu...” Soluço gaguejou levemente. Não, não podia ser... “Eu não sei do que você está falando...”

   “Nada acontece nesta ilha sem que eu fique sabendo.” A voz de Stoico era forte.

   “Não?”

   “Chegou a hora de conversar sobre o dragão.” Ele cruzou os braços, seriamente.

   Soluço sentiu como se o mundo desmoronasse ao seu redor. Como Stoico havia descoberto sobre Banguela? Será que alguém tinha o contado? Ou talvez ele tivesse visto os dois, enquanto voavam por aí... Aquilo era terrível. Soluço não esperava que as coisas terminassem assim!

   Agora que seu pai sabia... Como ele iria reagir se Soluço falasse que tinha virado amigo de um dragão? Que tinha até ajudado tal dragão a ganhar sua habilidade de voo de volta? Tantas vezes ele tinha ouvido Bocão e outros, Stoico incluso, falando sobre como um dragão sem asas, é um dragão abatido...

   Soluço sentiu a marca da mordida arder só ao pensar no Fúria da Noite, como se um fogo se alastrasse pelos sulcos dos dentes, mas ele ignorou a dor, já que tinha algo muito mais importante em que pensar.

   “Ah, meus deuses, pai, me desculpa... Eu-- Eu ia te contar pai, mas eu não sabia como, eu...” Ele gaguejou, sem saber o que falar. Sua garganta estava seca e ele sentia como se fosse ter um ataque de pânico a qualquer momento.

   “Stoico.” Valka interveio, sua voz calma e suave. “Pare de ficar assustando assim o garoto.”

   Soluço não entendeu quando Stoico começou a rir, começando em uma risada baixa e ficando cada vez mais alto. Soluço olhou para sua mãe que sorria levemente para o pai. Ele chegou até a rir junto, mais de nervoso do que qualquer coisa mais.

   “É... você não ficou zangado?” Ele experimentou, ainda confuso.

   “O que?” Stoico exclamou, ainda sorrindo. “Sempre sonhei com isso!”

   “Ah, é mesmo...?” Soluço murmurou, desviando os olhos para a mãe novamente. Valka balançou a cabeça levemente. E no mesmo momento, Soluço ligou os pontos.

   Stoico não estava falando de Banguela, estava falando de outros dragões.

   “E fica cada vez melhor! Espere até arrancar o bucho de um Nadder pela primeira vez! Ou enfiar sua primeira cabeça de Gronckle na lança!” Ele deu o que devia de ser um tapinha no ombro de Soluço, mas foi forte o bastante para lança-lo contra a parede. “Ah, que sensação!”

   Soluço se encolheu com o arder da mordida e com as palavras de seu pai. As imagens que elas proporcionavam faziam seu estômago dar voltas e, por um momento, ele até imaginou Banguela em uma dessas situações...

   Stoico não pareceu notar aquilo, mas Valka sim. Seus olhos ficaram mais sérios, preocupados talvez ao ver o garoto se encolher levemente.

   “Você me enganou direitinho filho!” O chefe continuou falando, alto o bastante para toda Berk ouvir. “Todos esses anos foi o pior viking que já existiu em Berk! Odin, foi difícil! Quase desisti!” O estômago de Soluço se embrulhou novamente, como se aquelas palavras fossem uma lança atravessando-o de repente. “Enquanto isso você estava escondendo o seu talento! Ah, poderoso Thor!”

   “Stoico.” Valka interveio, sua voz forte.

   Mas Stoico estava animado demais para ligar. Se bem que ele normalmente não parecia ligar mesmo, ele não era muito cuidadoso com suas palavras – assim como a maioria dos vikings e até mesmo Biscoito. Soluço estava acostumado com aquilo, mas só porque tinha se acostumado, não queria dizer que não doía.

   “E agora que está indo tão bem na arena...” Stoico se sentou, ficando um pouco mais no mesmo nível que seu filho – mas ainda uma cabeça acima. “Vamos enfim ter assunto para conversar.”

   Houve um silêncio pesado entre os dois, o fogo estalando no meio da sala sendo o único som na casa. Soluço desviou os olhos do pai para a mãe, que ainda o encarava com os mesmos olhos sérios de antes. Ele deu uma olhada em sua irmã.

   Biscoito simplesmente encarou o irmão, o cenho franzido, antes de subir para seu quarto.

   “Não é?” Stoico disse, como que para iniciar a conversa, puxando a cadeira um pouco mais para frente.

   Mas Soluço não tinha o que dizer. É claro que ele não iria contar para seu pai sobre suas “técnicas”, não agora. Ele nem sabia como Stoico iria reagir quanto a isso.

   A mordida em seu ombro ardeu novamente, como se Banguela estivesse o mordendo mais uma vez. Ele levou a mão até a área, afagando suavemente, no que ele esperava parecer ser só um gesto casual.

   “Stoico, o presente.” Valka finalmente quebrou a tensão.

   “Ah, é, eu trouxe um presente...” Stoico assentiu, parecendo tão desconfortável com o silêncio quanto seu filho. Ele abriu um dos sacos que trazia consigo e retirou lá de dentro um elmo. “Pra você se proteger na arena...”

   “Olha, valeu...” Soluço pegou o objeto com interesse, passando a mão sobre o metal. Era um elmo típico de viking, com dois chifres enormes em cada lado. O elmo viking era um sinal de força e respeito, e Soluço não conseguiu deixar de se sentir lisonjeado ao recebê-lo.

   Mas o sentimento durou pouco, ao se lembrar que ele não merecia aquele presente. Ele não tinha demonstrado força ou coragem em batalha, ele só tinha aprendido novos truques para acalmar dragões...

   “Era da sua avó. Metade do peitoral dela.” Soluço puxou a mão para longe, sem saber como se sentir ao saber que aquele pedaço de metal e couro tinha uma vez sido usado para outra parte do corpo. “Faz par com o meu.” Stoico tocou seu próprio elmo. “Ela ficaria orgulhosa.”

   Soluço nunca tinha conhecido sua avó paterna Valhalarama, mas sabia que ela tinha sido uma grande guerreira. Não era de se admirar a leve veneração que Stoico tinha por ela, sua própria mãe.

   “Use com orgulho. Você merece.” Stoico sorriu, levemente. Soluço nunca tinha o visto sorrir assim. “Cumpriu sua parte do acordo.”

   “Ah, sei...” O garoto murmurou, deixando o elmo de lado por um momento. Tinha quase se esquecido do “acordo” que tinha feito com o pai. O acordo de trazer-lhe orgulho “assim como sua irmã”...

   De um modo ou de outro, Soluço estava aliviado. Stoico ainda não sabia sobre Banguela, ninguém ainda sabia sobre Banguela. Mas outra parte dele não estava tão animada. Mais uma pessoa que o via como alguém que ele não era. Soluço não esperava que sua vida acabasse daquele jeito, sendo uma pilha de mentiras depois da outra.

   “Stoico, está tarde.” A voz de Valka tirou o garoto de seus pensamentos, e o fez notar que todos estavam em silêncio por alguns minutos. “Acho que seria melhor todos irem para cama.”

   “Ah, sim, claro, claro...” Stoico se levantou de sua cadeira, a empurrando para trás com mais força que o necessário.

   “É, a mãe-- A mãe tem razão...” Soluço concordou com sua mãe. E ele quase sorriu para ela, notando que estava do seu lado no meio daquela conversa desconfortável.

   “Claro, adorei a conversa! Espero que goste do seu... Elmo...” Stoico sorriu para o filho, de modo sem jeito, terrivelmente parecido com o próprio sorriso do garoto. “Boa noite, filho.”

   “É, boa noite e obrigado pelo... Elmo peitoral...” Soluço retribuiu o sorriso.

   Stoico deu um leve beijo na bochecha da esposa e se dirigiu para seu quarto.

   Soluço se virou para Valka, esperando para ver se ela ia acompanhar o marido ou não.

   “Soluço, não ligue para o que seu pai disse.” Sua mãe se aproximou, sorrindo levemente. “Ele está orgulhoso de você, ele só não sabe muito bem que palavras deve usar.”

   “É, eu... Eu notei...” Soluço assentiu, se lembrando do que o pai tinha dito sobre ele. O “pior viking”, não é mesmo?

   “Eu também estou muito orgulhosa de você.” Valka disse, brincando com os cabelos do filho. “Eu assisti os seus treinos.”

   “Ah, sério? Eu nunca... Te vi lá...” Soluço não sabia como se sentir quanto a isso.

   “Eu vi que você não usa as armas que te dão...” Sua mãe continuou falando, e havia alguma coisa diferente por trás de seu tom de voz. “E ainda assim de algum modo, você consegue sempre vencer.”

   Soluço não conseguiu deixar de sorrir levemente. Devia saber que sua mãe ia gostar daquilo.

   “É, é como você sempre diz, mãe...” Ele deu de ombros. “Acho que... Usar armas só piora as coisas...”

   Valka sorriu para seu filho, antes de puxá-lo para um abraço forte, bem mais forte do que era esperado vindo de uma mulher magra como ela. Soluço retribuiu o abraço.

   Porém, o momento foi cortado para ele quando a mão de sua mãe pousou em seu ombro. Ele sentiu a ardência voltar para aquela área, como se reagisse ao toque, mesmo um toque suave como aquele.

   Soluço fechou os olhos e se segurou para não empurrar a mãe para longe, tentando ignorar a dor estranha.

   Mas, em pouco tempo, Valka se afastou. Ela pareceu não notar a reação de seu filho, voltando a atenção à algo que carregava em sua cintura.

   “Aliás, isso aqui é para você.” Ela sorriu, erguendo um objeto de couro de iaque. “Seu pai lhe deu um presente. Você não acha que eu não te daria um também, não é?”

   Soluço pegou o objeto com cuidado, notando que era uma bainha miúda. E, dentro dela, estava uma adaga. Era surpreendentemente bonita, com a base de madeira esculpida com símbolos dos deuses.

   Ele se lembrava de ter mencionado para a mãe que tinha perdido sua adaga um dia – embora a verdade é que ele tinha lançado a adaga fora para não antagonizar um Fúria da Noite. Ele achava legal que sua mãe havia se lembrado disso.

   “A adaga do velho Enrugado.” Valka esclareceu com um sorriso. “Ele nunca a usou contra qualquer pessoa ou dragão...” Soluço ergueu os olhos para a mãe, entendendo a importância do presente para aquele momento. “Eu acho que ele gostaria que você ficasse com ela. Talvez se torne útil. Para a coisa certa.”

   “Obrigado, mãe...” Soluço guardou a adaga de volta na bainha.

   Diferente de Valhalarama, Soluço tinha conhecido Enrugado, o pai de sua mãe. Ele era conhecido em Berk por ser um velho estranho, que se importava com coisas que vikings normalmente não pensavam. Ele também era irmão de Gothi, a sábia velha da vila, mas não era como se Soluço ou Biscoito a chamassem de tia-avó.

   Soluço gostava do avô, mesmo não tendo passado muito tempo com ele. E Soluço sabia bem porque gostava dele, porque seu avô era uma das únicas pessoas que não o fazia se sentir como o esquisito da tribo. Possivelmente porque Enrugado era um esquisito por si só.

   “Soluço...” Valka chamou a atenção de seu filho, sorrindo docemente. “Eu quero que você saiba que eu tenho muito orgulho de você.”

   O garoto não sabia como responder aquilo. Uma grande parte dele murmurava que não tinha muito para a mãe se orgulhar, ainda assim, ele ficava feliz em ouvir aquelas palavras. Valka já tinha dito isso, muitas vezes, muito antes de Soluço se tornar o astro mais famoso da tribo; o que o fazia confiar mais nas palavras de sua mãe do que as de seu pai...

   A mão de sua mãe pousou em seu ombro e seu corpo ficou tenso.

   “Está tudo bem, querido?” Valka notou no mesmo instante.

   “Ah, sim, sim, tudo bem, mãe...!” Soluço riu nervoso. “É só que... É, eu acho que o pai não sabe muito bem como ser delicado, não é...?” Ele esfregou o braço em que Stoico havia lhe empurrado antes.

   Valka riu, antes de dizer que já estava tarde e se dirigir para seu quarto depois de apagar a fogueira.

   Soluço rapidamente correu até seu quarto, levando seus novos presentes consigo. Ele colocou o elmo novo na cabeceira da cama, e deixou a adaga, ainda dentro da bainha, embaixo do travesseiro. Ele não sabia se iria usá-la em algum momento no futuro, nem sabia se iria levá-la consigo para lá e pra cá, como fazia com a velha adaga que tinha e da qual tinha se livrado... Quando tentava fazer “amizade” com Banguela.

   Soluço parou por um momento, desviando os olhos para o ombro coberto. Ele deslizou a camisa por cima da cabeça. As faixas estavam manchadas de vermelho, mas era como se o machucado tivesse finalmente parado de sangrar.

   Ele ainda estava confuso, sem saber porque Banguela tinha o mordido. Tudo estava indo bem até aquele momento, os dois tinham voado juntos pela primeira vez. Talvez a mordida tivesse um significado para os dragões, ou talvez só para os Fúrias da Noite, talvez fosse um significado bom... Mas ainda doía, e era só nisso que Soluço conseguia pensar no momento.

   Com um suspiro, ele colocou a camisa de novo. Não queria correr o risco de alguém ver suas faixas.

   Soluço deitou em sua cama, tentando ignorar a ardência da mordida. Parecia doer muito mais do que antes, como se seu corpo tivesse só agora processado que estava ferido.