A Saga do Destino - Livro 1
A Chave Elemental
Capítulo 1 - Apenas um dia normal
Cuidado!
Thomas se virou o mais rápido que conseguia. Ele sabia que devia desviar, mas tudo o que fez foi fechar os olhos, um borrão colorido sendo a última coisa que conseguiu ver.
Um baque alto e uma dor repentina, e de repente ele se viu de costas na areia.
– Caramba! – Tobias correu até ele. – Thomas! Você está bem?
Thomas se remexeu, seus amigos o ajudando a se levantar, e ele deu uma inspecionada no estrago. Seu nariz doía, mas parecia estar bem.
Eu sabia que isso ia acontecer..., Thomas nem tinha certeza se tinha direcionado aquilo para si mesmo ou para aquela vozinha em sua mente que o incentivou a participar do jogo. Se é que há diferença entre os dois.
Ele nem sequer gostava de vôlei! E ele sabia que tinha mais chances de dar um ponto extra para o adversário em vez de ajudar seu próprio time.
Sem contar que se concentrar não estava sendo muito fácil ultimamente.
Thomas jurava que tinha tentado manter os olhos focados na bola colorida. Ele tinha tentado com todas as suas forças parar de pensar naquele sentimento irritante e persistente na sua nuca. Mas depois de um tempo ele não pôde mais ignorar a sensação estranha de que alguém – ainda – estava o observando.
Uma vez de pé, Thomas desviou os olhos para o bosque da escola como tinha feito antes de receber uma bolada na cara, prendendo os olhos nas samambaias que tinham crescido com as últimas chuvas.
Ele não tinha certeza se tinha visto alguma coisa ou se só tinha imaginado, mas algo tinha se movido entre as plantas. Não era um animal (os cães de guarda sempre ficavam trancados no horário de aula) e também não parecia ser alguém da própria escola (não estava usando o uniforme e nem era grande o bastante para ser um dos jardineiros).
– Thomas no chão! Que surpresa! – O time adversário se aproximou da rede e Thomas já sabia que o líder do grupo era quem tinha o acertado com tanta força. – O mais surpreendente é que vocês ainda chamam ele pra jogar com a gente!
– O que quer dizer com isso? – Samanta, a única garota no grupo, sibilou, sempre pronta para defender o amigo.
– Ele não sabe jogar nada! Nem futebol! – O garoto deu de ombros, sem ligar para o fato de que Tobias, que era uma cabeça maior que ele, o encarava com uma expressão carrancuda. – Lembra que foi por causa dele que a gente perdeu aquele jogo ano passado?
Thomas fez uma careta, desconfortável com a lembrança.
– Pelo menos algumas das lambanças dele resultam em ponto pra gente. – Outro rapaz comentou e o grupo riu.
– Não foi só culpa dele! – Tobias exclamou e o ruivo revirou os olhos. – E ele não tem culpa se não consegue jogar esportes direito!
Muito encorajador, obrigado, Tobias., Thomas não ousou dizer, sabendo que o loiro só queria defender sua honra. Ele pousou a mão no ombro desse, o puxando antes que falasse (ou fizesse) algo que não devia; Tobias sempre tinha sido do tipo que agia antes de pensar.
– Nah, deixa… – Alguma coisa quente começou a descer por seu lábio superior. Thomas tocou com cuidado, vendo o vermelho na ponta dos dedos. – Ah, legal…
Samanta acompanhou Thomas até a enfermaria da escola, reclamando alto do grupo adversário e murmurando coisas para o amigo. Thomas sabia que ela estava tentando o animar, o que era legal, mas no momento tudo o que ele queria era que ela ficasse quieta; ainda assim ele foi o único que ficou em silêncio.
A freira na enfermaria reclamou sobre a supervisão das aulas livres enquanto ajudava Thomas com o sangramento, mas como não era nada grave, ela logo os liberou. Os dois se sentaram em um banco solitário no corredor vazio, sem vontade de voltar para as quadras.
Thomas continuou calado, com um lenço gelado escondendo o nariz dolorido. Não sabia no que pensar exatamente, dividido entre vergonha e desconforto; então ele tentou pensar no que tinha visto, ou no que pensava ter visto.
Ele não era idiota, ele podia ligar os pontos: quem quer que fosse, estava o seguindo e o observando. Era assustador. Ele não sabia se estava em perigo ou não.
– Não ligue para o que aqueles idiotas dizem. – Samanta o arrancou de seus pensamentos.
– Eles têm razão de qualquer jeito. – Thomas deu de ombros, abaixando o pano. Seu nariz não parecia mais estar sangrando, o que era bom. – Eu não presto para nenhum esporte.
Samanta o lançou um olhar incomodado, antes de revirar os olhos. Thomas se sentiu grato e um tanto desconfortável com aquela reação.
– Eu até faria um discurso sobre encarar isso de frente, mas… – Samanta deu de ombros e estalou a língua. – Você odeia isso, então não tem por quê.
Thomas riu um pouco sem jeito, concordando mesmo assim. Ele se lembrava de ter visto Samanta pela primeira vez numa competição junior de basquete, embora só estivesse lá porque seu pai gostava de basquete e queria apoiar o time da escola de seu filho. Quando ela aparecia em campo o time adversário tremia nas bases.
Mas ela não era Thomas (como sua mãe insistia em falar).
Ele fez uma careta, se lembrando do que Tiago tinha dito. O garoto não estava errado, ele tinha causado problemas para o time algumas vezes; a esse ponto seu professor tentava ao máximo o deixar na cadeira de reserva, mas como o diretor e a pedagoga da escola queriam que todos os alunos tivessem a chance de jogar, para ter certeza de que ninguém se sentisse “de fora” ou excluído, ele às vezes tinha que estar em campo.
Não era que ele não gostava de participar, era mais que ele... Não tinha certeza se conseguiria participar de verdade. Ele tentava, mas era um pouco difícil ser confiante no que ele podia fazer bem quando tantas coisas apontavam para o contrário.
Thomas suspirou, tentando afastar aquele pensamento.
– Mas hoje a culpa não foi minha. – Ele se pegou se defendendo. – Bem, foi sim, eu me distraí. Mas… – Ele hesitou. – É que eu vi uma coisa…
– Que coisa? – Samanta perguntou, curiosa como sempre.
– Alguma coisa ou alguém. – Thomas se corrigiu. – Estava lá, no bosque perto da quadra grande.
– Mas aquela área está interditada! – A garota exclamou um pouco alto demais no corredor silencioso. – Você viu quem era?
– Eu nem sei se era uma pessoa ou não!
Ele hesitou, ia mesmo falar sobre aquilo para a amiga? Honestamente, fazia um tempo que ele queria falar sobre aquilo com alguém… Talvez fosse a hora certa. E, de qualquer modo, ele sabia que Samanta seria a última pessoa no mundo que o chamaria de louco. Ele suspirou uma última vez.
– Olha, isso pode soar estranho, mas é tudo verdade! – A garota o olhou de modo estranho, mas fez sinal para que continuasse. – Já faz um tempo que eu sinto… Como se alguém estivesse me seguindo. Quase sempre eu tenho esse sentimento estranho… Como se alguém estivesse comigo o tempo todo, até quando estou sozinho. Como uma presença!
A garota não falou nada e Thomas ficou quieto também, esperando.
– E você falou com seus pais sobre isso?
Thomas levantou os olhos. Samanta não estava rindo, sua expressão era neutra, talvez só um pouco preocupada.
– Não… Não falei…
– É melhor falar. – Sua voz era séria. – Olha, você acabou de me dizer isso, mas eu já tenho minhas teorias. Primeiro, eu não acho que você é impressionável o bastante pra inventar isso só porque viu alguma coisa que parecia outra coisa. – Thomas assentiu, concordando. – Então talvez… Segundo, você tenha algum tipo de esquizofrenia ou coisa do tipo, mas eu não me lembro de ver nenhum outro sintoma em você. Não que eu entenda disso. – Thomas não tinha pensado nessa possibilidade antes. – Ou terceiro… Tem mesmo alguém te seguindo por aí…
Um calafrio subiu pelas costas do rapaz e um sentimento estranho, mas familiar, tomou sua garganta. Thomas desviou os olhos para o corredor, como se ele estivesse se preparando para correr, como se alguma coisa estivesse pronta para pegá-lo desprevenido.
– Então você acredita em mim? – Ele perguntou, só pra ter certeza.
– Não tem por que não acreditar. Eu sei que você não é louco. – Samanta pensou um pouco. – Mas…
– Mas o que?
– Essa presença que você sente…
Mais um calafrio e o rapaz ficou tenso.
Sentado ao lado de Samanta, Thomas conseguia notar a diferença. Não era a mesma coisa que ele sentia quando sua amiga estava ali com ele, era um tipo de presença estranha que não parecia ser real, mas que ao mesmo tempo Thomas sentia ser real.
Era como se alguém estivesse sentado ali com eles.
Samanta notou seu desconforto.
– Você está…?
– Sim…
Thomas e Samanta quase caíram do banco quando os alto-falantes da escola ecoaram pelo corredor vazio. E quando Thomas notou, a presença tinha sumido, tão rápido quanto tinha aparecido.
Ele sentiu seu peito doer e respirou fundo uma vez, duas vezes, sem notar que Samanta o observava.
– Aliás, eu não queria falar sobre isso antes, mas… Tem marcas escuras embaixo dos seus olhos… – Ela mencionou.
– Eu sei, eu sinto elas.
– Noite difícil?
– Só um pesadelo, nada demais. – Thomas murmurou, sem vontade de falar sobre aquilo.
Samanta ficou quieta por um momento.
– Você acha que tem a ver com isso? – Ela perguntou em tom baixo.
Thomas hesitou. Ele não tinha realmente conectado os pontos, mas quem sabe…?
– Eu não sei…
Ele tinha dificuldade em se lembrar de seus sonhos, mas ainda sabia que naqueles últimos dias sua mente tinha sido inquieta durante a noite. Os papéis de sua escrivaninha já estavam cheios de rabiscos baseados na pouca memória que ele tinha de seus devaneios. Mas ele tinha quase certeza de que, em vários daqueles sonhos, ou pesadelos, ele estava correndo, fugindo de alguma coisa, ou então tentando alcançar alguma coisa.
– Se você quiser conversar com alguém sobre isso, eu estou livre. – A garota disse num tom sério, mas ainda com um sorriso. – Exceto na quarta, que são dias de aula de música!
Thomas não pôde deixar de rir.
Samanta se levantou, pronta para voltar para a sala de aula, quando algo caiu de seu bolso com o movimento. Thomas riu mais uma vez ao ver que, ironicamente, era uma das palhetas de violão da amiga.
– Sam! Você derrubou…
Ele pegou a palheta e o mundo pareceu ficar em câmera lenta. Uma forte dor correu por seu corpo, como um raio estralando numa tempestade, subindo de seus braços até a sua cabeça. Thomas fechou os olhos, perdendo o equilíbrio, e por um instante, mesmo com as pálpebras fechadas, ele pôde ver Samanta sentada em sua cama, treinando alguns acordes no seu violão velho.
– Thomas? – A voz da garota fez a dor sumir.
Thomas abriu os olhos, notando que, em algum momento, tinha acabado agachado contra o banco. Samanta ainda estava ali, eles ainda estavam na escola e o violão não estava em lugar algum.
– Eu estou bem… Aqui. – Ele estendeu a palheta para a amiga.
Samanta o olhou de modo estranho, mas aceitou o objeto de volta, antes de ajudar o amigo a se levantar. Thomas balançou a cabeça para ter certeza de que tinha se livrado da sensação esquisita, mas era como se ela nunca tivesse existido. Sangue escorreu de seu nariz novamente e ele o limpou com o lenço.
Thomas nem viu as últimas aulas passarem, tanto que se alguém perguntasse que matérias eram, ele não poderia responder. Quando o sinal tocou uma última vez, ele arrumou os cadernos dentro da mochila, tentando não encarar as janelas grandes, até que ele ergueu a cabeça para ter certeza de que não tinha esquecido nada, e seus olhos se desviaram para o vidro.
A quadra pintada da escola estava vazia, mas o formigamento de antes tinha voltado, como se tivesse alguém lá embaixo, o encarando.
– Thomas? – O garoto suspirou, sentindo seus ombros caírem. Por que agora? Por que aquele cara? Ele se virou, tentando não fazer uma careta. – Foi mal hoje mais cedo.
– Tá tudo bem, Tiago. – Thomas disse, tentando terminar a conversa ali.
– Mas, falando sério, você não devia jogar. – Tiago continuou falando, ignorando o olhar irritado de Thomas. – Ou jogue, eu não mando em você. Ajuda o meu time a ganhar mais.
Ele não queria ouvir mais daquilo. Thomas jogou a bolsa por cima do ombro e empurrou o outro para fora de seu caminho.
– Talvez você devesse começar a jogar com as garotas! – Tiago chamou, seguindo o ruivo pelo corredor. – Talvez no meio delas você consiga se concentrar melhor!
Thomas sabia que não devia se surpreender com o comentário. Não era preciso pensar muito para saber o que Tiago estava insinuando sobre sua atenção e garotas. Ele não tinha problema com a insinuação, só não estava esperando aquilo tão de repente.
Sua mão se apertou em punho contra sua vontade. Tiago estava perto, era só virar com o punho erguido e… Não, não tinha porque brigar. Sem contar que o outro rapaz era um gigante perto de Thomas! Ele não conseguiria nem ficar de pé depois de uma briga com ele!
Era melhor ignorar.
Uma mão tocou seu ombro, fazendo Thomas notar que tinha parado de andar.
– Ei, eu tô zoando. Falou? – Tiago disse, sorrindo torto, mostrando que aquilo não era totalmente verdade.
Aquilo deixou Thomas se coçando ainda mais para dar um soco naquela cara desaforada, mas ele se segurou, sentindo o mundo esquentar ao seu redor. Ele apenas encarou o outro, esperando que seus olhos dissessem tudo o que ele sentia.
Tiago fez uma careta e puxou a mão do ombro do outro rapidamente, olhando dela para o ruivo de modo estranho. Thomas ergueu uma sobrancelha, confuso, mas se apressou em direção da saída.
O calor e a irritação sumiram assim que ele viu seus amigos, esperando por ele perto dos portões.
– Aí está ele! – Paulo sorriu. – Tá tudo bem, Tom-Tom?
– Sim, tudo bem. – Thomas revirou os olhos com o apelido. Ele lançou um olhar para Samanta, que apenas sorriu, mesmo com olhos sérios, e ele sabia que ela não tinha falado sobre aquilo com os outros.
Thomas acompanhou o grupo para fora da escola, sem prestar atenção no que diziam. Sua mente estava distante, pensando no que Samanta tinha dito e nas coisas que ele tinha sentido… Mas, sendo honesto para si mesmo, nada daquilo era muito diferente do que ele costumava sentir todo dia.
Ele nunca tinha notado como aquilo era algo estranho de admitir até aquele ponto.
– Thomas? Alô? – O ruivo quase pulou ao sentir um cutucão ao seu lado. – Você está aí?
– O que foi? Eu não ouvi… – Thomas murmurou.
– Vamos descer a rua para comprar sorvete. – Tobias disse, se voltando para o ruivo. Ele ainda parecia um pouco preocupado, mas sorria. – Você vem com a gente?
Thomas notou o olhar de Samanta.
– Não posso, vocês sabem. – Ele deu de ombros. – Eu vou pelo corredor mesmo. A gente se fala amanhã.
– Está acertado então? – Paulo perguntou, se inclinando contra Jonathan, seu irmão mais novo. – Co-op e depois shopping?
– Claro! – Thomas sorriu. – Aliás, vocês deviam deixar para tomar sorvete amanhã no shopping em vez de hoje.
– Lá é caro demais. – Jonathan revirou os olhos, empurrando o irmão. – E nem tem sabor.
Eles ficaram parados na esquina por um tempo, conversando sobre videogames e os planos do dia seguinte, de aproveitar o dia juntos depois de comprar livros para a aula de literatura. A conversa fluiu normalmente, mas Thomas notou como Samanta ainda o encarava.
– Querem saber de uma coisa? Eu vou com o Thomas. – Samanta disse quando a conversa chegou ao fim. – Minha mãe pediu pra eu comprar uma coisa no mercadinho.
Thomas sorriu para a amiga, se sentindo ao mesmo tempo envergonhado e grato por seu apoio. De qualquer modo, tudo o que ele menos queria era fazer o caminho sozinho.
Os dois se despediram dos amigos e se dirigiram juntos para os condomínios ao lado da escola, a animação da conversa sumindo a cada passo.
– Você sente alguma coisa agora? – Samanta quebrou o silêncio.
– Não. – Thomas disse, mas não era totalmente verdade.
Ele sentia alguma coisa, mas não era o formigamento de antes, era algo diferente, que sempre ficava mais forte quando ele seguia por aquele caminho.
Ladeado pelos grandes muros dos condomínios fechados, um pequeno corredor se abria. Não passava de um beco vazio há alguns anos, mas após a construção dos condomínios acabou se tornando um modo mais rápido e seguro de descer a rua sem passar pela estrada principal. A mãe de Thomas era sempre grata pela passagem: “Volte pelo corredor, meu querido! É muito perigoso andar naquela rua, com todos aqueles carros…” ela sempre dizia, com um ar desgostoso nas últimas palavras; sua mãe nunca tinha gostado muito de carros.
Mas, honestamente, já fazia um tempo que Thomas sentia vontade de ignorar as regras dela.
O corredor era estreito, tanto que às vezes era preciso se apertar contra um dos muros sujos para deixar outra pessoa passar. Thomas não era claustrofóbico, mas, por algum motivo, aquela estranha sensação que sempre o acompanhava parecia ficar mais opressiva e mais próxima quando ele estava entre aqueles muros.
Thomas deu uma olhada para trás, mas os dois estavam sozinhos.
– Tudo bem? – Samanta perguntou.
– Sim, tudo bem… – Ele murmurou, tentando se acalmar, sem muito sucesso.
Outra coisa que também o incomodava era a velha lenda urbana sobre o corredor, uma lenda que existia desde a época em que o lugar era apenas um beco com muretas baixas de madeira, embora alguns dissessem que a lenda era mais velha ainda.
A história mudava sempre que era recontada, com exceção de um detalhe: a história que, naquele corredor, havia um portal para outro mundo.
Os mais velhos diziam que esse “outro mundo” era o purgatório ou o inferno, enquanto outros até diziam que levava para o paraíso. Alguns pais falavam que era pra lá que o homem-do-saco levava as crianças malcriadas.
Thomas não acreditava em nada daquilo.
Mas tinha um objeto no corredor que sempre o fazia pensar duas vezes: um pequeno e misterioso tapete de boas-vindas, pintado em azul e verde, preso ao chão próximo a um dos muros.
Era dito que aquele pedaço de carpete era o que tinha iniciado a lenda, afinal, por que haveria um tapete de boas-vindas naquele lugar onde não havia nada? Alguns achavam que já existiu uma porta ali, de alguma casa derrubada há muito tempo, mas não havia registro algum dela. E não importava quantas vezes tentassem arrancar o carpete de lá, ele não se movia, como se estivesse cimentado ao chão.
– Ah, o tapete. – Samanta murmurou, tirando Thomas de seus pensamentos. – Coisa estranha.
– É… – Thomas desviou os olhos do tapetinho, sujo por jovens vândalos e pelo tempo, e os ergueu para o muro. A parede era lisa, coberta de pichações e de musgo onde a chuva molhava.
– Você acredita nas lendas? – A garota perguntou e não dava para saber se estava brincando ou se falava sério.
– Não. – Thomas respondeu com uma risada, ainda assim, quando ele se virou para continuar o caminho, seus passos estavam mais apressados.
Não havia coisa melhor do que ver o portão e o muro baixo de sua casa aparecendo à distância.
– Tem certeza de que está tudo bem? – Samanta perguntou mais uma vez.
– Sim, tudo bem. Tanto com o nariz, quanto… Você sabe. – Thomas disse.
A garota só assentiu.
– Qualquer coisa, me liga, tá?
Thomas concordou e acenou para a amiga enquanto ela seguia na outra direção, agradecendo silenciosamente pela companhia dessa.
– Cheguei. – Thomas murmurou enquanto abria a porta e a trancava de novo.
Creak. Um estalar alto na casa foi a única resposta.
– Olá, casa.
Era uma piada interna. A casa não era velha e as vigas de madeira do telhado eram novas, mas elas ainda estalavam alto. Thomas não era bobo, tinha aprendido na escola sobre a expansão e contração de objetos dependendo da temperatura, mas era engraçado brincar com a ideia da construção sendo um ser vivente.
De qualquer modo, aquela era sua casa, seu porto seguro, tanto do mundo lá fora quanto de sua própria mente, de um modo ou de outro. O formigamento tinha sumido e, embora a presença ainda estivesse ali, num canto de sua mente, era fácil ignorar.
Depois de jogar a mochila na cama e trocar de roupa, Thomas comeu sem pressa e escovou os dentes na mesma velocidade. Ele encarou seu reflexo no espelho, feliz por ver que tinha limpado completamente a mancha de sangue (se sua mãe visse aquilo ela teria um treco).
Samanta tinha razão, suas olheiras estavam bem escuras… Thomas se encarou em silêncio, aproveitando o sossego da casa protetora.
Ele tinha puxado bastante sua mãe, Marlene, com os cabelos naturalmente vermelhos – algumas pessoas até achavam que era pintado ou que não era cabelo de verdade, e Thomas não os culpava – e com olhos grandes e verdes, além das incontáveis sardas. O pouco que tinha de seu pai, Bruno, era sua estatura baixa, mesmo para um garoto de quinze anos.
Era como se ele fosse uma cópia masculina de sua mãe, mas enquanto Marlene era agitada e extrovertida, Thomas era mais quieto e reservado, como seu pai. Ainda assim, ele adorava passar tempo com aquela mulher, era como se ela visse a maravilha em tudo no mundo, até nas coisas mais simples.
Thomas deixou sua imagem de lado ao se lembrar, com um grunhido, de que tinha lição de casa para fazer. E ainda por cima de matemática! Ele detestava matemática, embora tivesse facilidade com a matéria.
Ele se sentou na escrivaninha, decidido a tentar resolver as sete questões deixadas pelo professor. Tudo o que ele via eram imagens geométricas… E uma voz, indo e vindo em seus ouvidos.
Por sua própria sanidade, ele empurrou o livro para o lado após três questões.
Aquele bendito poema que ele já tinha ouvido tantas vezes antes em seus sonhos…
Entre campos esverdeados, Enrolado em rios prateados…
Mas não importava o quanto tentasse lembrar, era como se o resto não existisse, embora Thomas soubesse que existia. Ele sempre tinha cada estrofe na ponta da língua, até chegar a hora de anotar.
Se houvesse um modo de entrar em sua mente e arrancar as palavras de lá diretamente…
Thomas fisgou um papel em branco do canto da escrivaninha e começou a rabiscar, com uma esperança boba de que fazer aquilo o ajudaria a lembrar.
Mesmo distraído, ele prestou atenção aos rabiscos. Primeiro, desenhou uma garota, era baixinha, meio rechonchuda e com cabelos lisos e negros que chegavam à altura dos ombros; em seguida uma cobra, com uma aparência inteligente e mortal; depois desenhou o que parecia ser uma máscara, do tipo de bailes mascarados; e, por fim, o esboço de uma pedra, ou cristal…
Thomas parou e examinou os desenhos, tentando entender o que significavam. Talvez aquilo tivesse a ver com o poema, mas ele não sabia, não sem conseguir lembrar todas as palavras.
– Eu posso usar isso um dia… – Murmurou para si mesmo, guardando o papel no canto da escrivaninha de novo.
Thomas não queria continuar a lição de casa, não estava com cabeça para isso. Era melhor relaxar.
A casa estalou de novo.
– Se você concorda comigo. – Ele se levantou e foi até o armário de filmes da família. Ainda podia sentir a presença o seguindo pela sala, mas ele agiu como se ela não estivesse ali.
Thomas já devia estar acostumado, ele sabia, afinal, não passava de mais um dia normal.
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